por Eduardo Carli de Moraes
“…se em algumas almas humanas, singularmente dotadas e de percepção sensível, se levanta a suspeita de sua composição múltipla, e, como ocorre aos gênios, rompem a ilusão da unidade personalística e percebem que o ser se compõe de uma pluralidade de seres como um feixe de eus, e chegam a exprimir essa idéia, então imediatamente a maioria os prende, chama a ciência em seu auxílio, diagnostica esquizofrenia e protege a Humanidade para que não ouça um grito de verdade dos lábios desses infelizes. (…) Na realidade não há nenhum eu, nem mesmo no mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades. Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer.” — HERMAN HESSE, O Lobo da Estepe
“Cada grupo exige uma transformação interna mais ou menos radical das pessoas que o compõem. Consideremos as metamorfoses pelas quais um homem pode passar no decorrer de um dia, ao se transladar de uma modalidade social à outra – pai de família, fragmento numa multidão, funcionário de uma organização, amigo. Trata-se não apenas de diferentes papéis – cada qual é um passado, presente e futuro inteiros, oferecendo diferentes opções e obstáculos, diferentes graus de mudança ou inércia, diferentes espécies de proximidade e distância, diferentes conjuntos de direitos e obrigações, diferentes compromissos e promessas. Não conheço teoria do indivíduo que o reconheça plenamente. Somos tentados a iniciar com a noção de uma suposta personalidade básica…” — R.D. LAING, A Política da Experiência e a Ave-do-paraíso
Na gíria falamos em “mariazinha-vai-com-as-outras”. Em linguajar bíblico, de “ir com o rebanho”. No trânsito muitas vezes tratamos de “seguir o fluxo”. E na escola e no exército nos ensinam a andar ordeiramente “em linha indiana”. São vários modos de falar do processo psíquico que faz com que um indivíduo se dissolva, se dilua e se aniquile na massa, exatamente como um camaleão amedrontado que se funde no ambiente para enganar seu predador.
Leonard Zelig, tragi-cômico herói criado e encarnado por Woody Allen neste falso documentário, um de seus filmes mais encantadores e geniais, é assim: um amedrontado camaleão humano. Assume a forma de qualquer pessoa com quem esteja: nas festas da alta-sociedade, em meio a socialites e mauricinhos, fala como se fosse um aristocrata; mas pode ser encontrado na cozinha falando com sotaque do povão, como um legítimo proletário, ao papear com a faxineira.
Coloque-o na presença de um índio da Amazônia e em poucos instantes ele estará falando em tupi-guarani e fazendo a dança-da-chuva. Na companhia de um gordo, sua pança incha. Junto de um chinês, seu olhinhos ficam puxados e ele se põe numa postura búdica. “Wanting only to be liked, he distorted himself without measure.” (F. Scott Fitzgerald)
A cada ser humano que ele encontra, Zelig se transforma para adaptar-se ao que imagina ser o desejo do outro – na ingênua e delirante crença de que será amado ao tornar-se o mais idêntico possível àquele que tem diante de si, sem imaginar que a alteridade não é o obstáculo mas a condição para a partilha verdadeira e para o amor genuíno.
Para sublinhar que não se trata de mero fingimento ou atuação da parte de seu herói, Woody Allen transforma Zelig num prodígio da natureza, numa criatura com super-poderes, atingindo pela caricatura um retrato psicológico que seria impossível de realizar através do realismo. Pois Zelig, decerto, é muito parecido com cada um de nós, em nossa persona social, sempre um tanto mutante: somos uma pessoa com nossos pais, outra com os amigos no boteco, outra com a namorada na cama, outra frente ao padre na igreja, outra se estivéssemos diante do presidente da república… Temos todos uma personalidade “plástica”, capaz de se adaptar ao meio-ambiente (e principalmente aos outros que nele se encontram).
Por isso Zelig é apenas um homem normal ao extremo e o filme não passa de uma grande tragicomédia do conformismo, que vai nos apresentando a todos os malefícios da normopatia – ao mesmo tempo que sugere também um modo de superação da inautenticidade. Pois, como diz Bruno Bettleheim, Zelig não é nada além do “ultimate conformist”.
INFINITAS PERSONAS
Quais as causas deste “estranho fenômeno”, Leonard Zelig, que constitui um quebra-cabeça para a Ciência? Teria ele um tumor cerebral? Uma mutação genética? Uma disfunção nas glândulas? Ou teria adoecido por excesso de comida mexicana? Isso não se elucida. A única “especialista” que se aprofunda no caso é a Dra Fletcher (Mia Farrow), que aposta que o problema dele era mais psicológico que fisiológico, e empreende um longo processo terapêutico, cheio de percalços, na tentativa de restituir Zelig a si mesmo.
Quando Zelig e sua doutora se isolam numa cabana na mata para um tratamento analítico longe das massas e dos papparazzi, é difícil não lembrar de Persona – ainda mais considerando que Allen sempre se declarou um fã incondicional de Bergman. Elizabeth Vogler, no clássico sueco de 1966, é subitamente acometida por uma estranha patologoia psíquica que a deixa absolutamente muda, uma “neura” que certamente tem uma certa relação com a “lizzardia” de Zelig.
Vogler sente-se inautêntica, incapaz de ser ela mesma, como se toda palavra que saísse de sua boca fosse uma mentira, uma concessão a outra pessoa, um afastar-se de seu próprio centro; ela se cala para poder parar de mentir. Zelig, por sua vez, também é radicalmente inautêntico, pois cada pessoa com quem entra em contato serve para ele apenas como um modelo a imitar, uma forma alheia a assumir, um personagem a encarnar. Seu rosto é perpetuamente recoberto por uma infinidade de máscaras. Ele é um ator de mil personagens que jamais soube qual deles é o verdadeiro – se é que ele existe. Ele jamais afirma sua própria opinião ou assume sua própria diferença.
Como uma esponja, assume provisoriamente os valores, os pensamentos, os sentimentos, as posturas corporais e as expressões faciais da pessoa com quem está imediatamente, tornando-se assim mera marionete do outro. Como um eterno puxa-saco existencial, torna-se vítima de seu temor excessivo de desagradar e de um desejo de amor tão intenso que o torna um falsário. Por isso Persona e Zelig podem ser vistas como duas grandes obras que, com um certo temperinho existencialista (que talvez não desagradaria a Sartre), demonstram vidas afundadas na inautenticidade e batalhando para dela escapulir.
A doutora Fletcher vê mais do que uma metáfora poética no paralelo entre Zelig e um camaleão. Sua tese “psicanalítica” é a seguinte: “Like the lizard, that is endowed by nature with a marvellous protective device that enables it to change color and blend in with its immediate surroundings, Zelig, too, protects himsef by becoming whoever he is around.”
Sua atitude não passa de um mecanismo de defesa através do qual ele procura se proteger dos ferimentos que as relações humanas poderiam lhe impor. O processo de “cura” passará, pois, por uma tentativa de torná-lo menos dependente da valoração alheia, mais confiante em si mesmo e capaz de externar seu ser com mais coragem, menos polidez, com uma espontaneidade não-calculada.
Allen dá um genial salto do pessoal ao coletivo ao sublinhar que não somente somos todos um pouco como Zelig, mas frisando ainda o potencial político danoso do “lizzardismo” (aproximando-se aqui das teses de W. Reich e sua Psicologia de Massas do Fascismo). Pois um homem que não tem individualidade própria, que se submete cegamente à autoridade-do-Outro, que quer ser um espécime idêntico a outros milhões, está prontinho para ser recrutado como soldadinho dos fascismos e totalitarismos. Não é à toa – nem é piada boba – o fato de Zelig, quando tem uma recaída em sua doença, vai parar na Berlim que sofre com a depressão econômica e se alista como um dos braços direitos de Hitler. “He craved to be loved, but there was something in him that desired immersion in the mass and anonymity”, comenta Saul Bellow. “Fascism offered Zelig that kind of opportunity. ”
Mas que não se confunda isso com um elogio do indivualismo, o que com certeza está longe das intenções de Woody Allen (que, pelo contrário, aponta muito bem a falta de substancialidade do eu, numa tese que é quase budista e que Hesse tão bem expôs no “Lobo da Estepe”). Pois o indivíduo que sente-se orgulhoso por ser “único”, que vive inebriado com seu próprio narcisismo e que jamais abre-se a um renovador contato com o outro, achando que ser original importa mais do que saber amar, é outro doente mental que, a golpes de solidão e mal-estar, talvez aprenda que não há felicidade alguma na impermeabilidade.
Falando nos termos da ética aristotélica, poderíamos dizer que entre os dois excessos – o diluir-se completamente na massa e o ser impermeável a qualquer influência vinda de outra pessoa – encontra-se a virtude. Virtude esta que eu chamaria, de bom grado, de “empatia”, sem a qual não há amor, amizade ou caridade.
A ilusão de que existe um eu único, uma identidade imutável, uma personalidade “fixa” por trás de todas suas manifestações e comportamentos, desaba nesta amplificação do carrossel do eu que se processa em Zelig – e que a cultura pop já celebrou em David Bowie e Raul Seixas, por exemplo. A “metamorfose ambulante” não é uma escolha – é uma imposição da vida. Somos mutantes, queiramos ou não. É como naquela belíssima cena d’O Lobo da Estepe, o clássico de Herman Hesse filmado magistralmente por Fred Haines em 1974, em que Harry Haller, o Steppenwolf, logo após ter adentrado os bizarros domínios do Teatro Mágico (“For Madmen Only”, lê-se na entrada…), fixa um espelho camaleão. O rosto de Max Von Sydow (um dos atores prediletos de Bergman, em um de seus mais deslumbrantes papéis) não se fixa. O espelho se transforma em um filme onde passeiam várias expressões e rostos. Como ele se liberta do fascínio horrendo daquele fluxo doentio, daquele ataque esquizofrênico? Pelo riso! Desencanando… Deixando de querer ser um e aceitando o fato de ser muitos…
We gotta laugh our way to freedom!
FREAK SHOW
O filme traz ainda uma desconstrução cômica radical do star-system americano, incessantemente caçoado através desta bisonha celebridade que é Leonard Zelig. Sua história vira melodrama de Hollywood, canção de Cole Porter e um estilo-de-dança popular abraçado até por Josephine Baker – sem falar de um argumento de consumo para que se vendam camelões nos pet shops e livros inspirados no Chameleon Man nas livraria.
Americanos aos milhares atravessam centenas de milhas para passar os olhos sobre o Camaleão Humano, o pop-star da hora. “He’s a sight to behold for tourists and children”, comenta o narrador por cima de imagens de trânsito engarrafado pelos fãs que vão em romaria rumo ao ídolo – “to peek at this new wonderment”.
Zelig, enfim, é um freak que a mídia adora explorar. Ele está na primeira página dos jornais pois é um “furo nato”, nem exigindo aumento e exagero para que a história pegue. “You just told the truth, and it sold papers! It never happened before”, comenta um jornalista.
Citando jocosamente o clássico de Orson Welles Cidadão Kane em vários momentos, Woody Allen faz de seu Leonard Zelig uma estrela-da-mídia que revela o quanto a cultura-de-massas é um circo demencial (irmanando-se, neste sentido, a outros clássicos do cinema como Network, de Sidney Lumet, e The Front Page, de Billy Wilder).
Na Jazz Age tudo na mídia já é efêmero e já começou o frênesi da informação descartável que hoje conhecemos tão bem. O narrador aponta a gangorra entre a excitação e a apatia, a velocidade da informação e a falta de memória: “The thrill-hungry public soon becomes apathetic. Fresh scandals appear and make headlines. A population glutted with diversion is quick to forget.”
Allen denuncia – e nos fazendo dar muita risada no processo! – a paixão dos telespectadores americanos por freak-shows numa provocação certeira, de certo modo prenunciando uma das temáticas que será explorada com artilharia pesada, décadas depois (se bem que com menos delicadeza e mais escracho), nos Simpsons e no South Park.
David Lynch, com seu O Homem Elefante, ou Todd Solondz, com todos os seres bizarros de Palíndromos ou Felicidade, já trataram em suas obras deste fenômeno que poderíamos chamar de “a curiosidade macabra do público”.
HAPPY END?
“His sickness was in the root of his salvation”
SAUL BELLOW
Na raiz da patológica lizzardia de Lenny está, como a Dra Fletcher tão bem percebe, uma carência afetiva. O resgate da história familiar de Zelig que o filme faz nos convida a imaginar uma grande desgraceira sentimental – sim: uma infância traumática, como os psicanalistas adoram ter em mãos para explicar doenças mentais. Os Zelig moravam sobre uma pista de boliche, mas era a pista de boliche que reclamava do excesso de barulho. Vítima de anti-semitas na escola, o “judeuzinho” era alvo recorrente dos bullies. Em casa, era frequentemente trancado no armário – e os pais se trancavam junto com ele nos dias em que estavam mais bravos. Na cama de agonia, o pai lhe comunica que a vida não passa de um “meaningless nightmare of suffering” [um pesadelo de sofrimento sem sentido].
Também com a religião não tem boas relações. Sente grande decepção pelo rabino, a quem ele perguntou um dia o sentido-da-vida. “Ele me respondeu qual o sentido da vida, mas me disse em hebraico”, comenta Zelig. “E aí quis me cobrar 600 dólares pelas aulas de hebraico.” Mais tarde na vida, é crucificado pelo cristãos por não respeitar os sagrados laços do matrimônio (pois fez filhos em várias mães solteiras…). Uma tiazona da Liga das Senhoras Católicas até pede: “lynch the little hebe!” (linchem o hebreuzinho).
Donde uma certa melancolia, em Zelig, que num arroubo de sinceridade confessa nos termos mais simples: “I’m nobody. I’m nothing.” Nos agridoces momentos de crise de identidade, quando começa a se delinear uma relação amorosa com a doutora, o narrador descreve seu vazio: “He only wanted to fit in, to belong, to go unseen by his enemies and be loved. But he neither fits nor belongs, is supervised by enemies and remains uncared for”.
Este homenzinho carente, faminto por amor mas incapaz de conseguir nenhum, adota as atitudes mais extremas “to blend in”, se transformando numa grande poser. “O Zelig é um fingidor / Que finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente” — parafraseando Pessoa. Sua salvação, é claro, só poderia estar num relacionamento íntimo que possibilitasse o desabrochar de sua autenticidade, o que ele encontra plenamente na Dra Fletcher, cujo doce trabalho em relação ao “paciente” que transformou-se em ser-amado é “provide love and affection” e “unconditional positive regard”. Vale frisar que o casalna tela soa tão genuíno pelo fato de Woody Allen e Mia Farrow terem sido lovebirds na assim-chamada “vida real”.
No fim das contas, Zelig termina com um doce final feliz, dos mais joviais que Woody já criou, e que é de um romantismo-realista (não: não vejo absurdo…) que sempre achei adorável( e que prossegue desenhando um sorriso duradouro no fundo de mim, ainda que eu já tenha assistido este filme umas 5 ou 6 vezes…). Óbvio que Woody Allen não gosta nada dos roliúdianismos sentimentalóides, ou seja, aqueles happy-ends extremamente adocicados e espetaculosos, com beijo na boca arrebatado e fogos de artifício ao fundo. Mas a “moral da história” em Zelig não deixa de ser afirmativa do amor e de seus imensos poderes terapêuticos.
É o amor de uma mulher que salva Leonard Zelig de sua bizarra psicopatologia – que o fizera presa de tantas metamorfoses incontroláveis e que havia-lhe trazido tantas desventuras em termos de processos judiciais, filhos bastardos, acusações de bigamia e problemas com a polícia por causa da extração não-autorizada de dentes e apêndices. Depois da servidão ao outro, a libertação da partilha. Depois do carrossel do eu e do desfile das máscaras, a nudez da verdade. Depois do frenético freak show repleto de requintes fake e kitsch, o repouso na autenticidade. Afinal de contas, “não foi a aprovação de muitos, mas o amor de uma única mulher que mudou sua vida”.
Leonard Zelig, o camaleão humano,
em algumas de suas encarnações:
Publicado em: 11/06/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia